
Santo Antônio e o Milagre dos Peixes
20 de jun de 2024
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No mês em que celebramos Santo Antônio, santo muito amado pelo povo brasileiro, reconhecido e glorificado por seus diversos feitos, cabe refletirmos sobre a sua vida e missão no que diz respeito ao exímio serviço prestado no ministério da pregação e o grandioso exemplo de uma vida totalmente entregue ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Recorremos para isso, à leitura e reflexão de algumas partes do sermão do Padre Antônio Vieira, pregado no ano de 1654, na cidade de São Luís do Maranhão, que pela pertinência, riqueza e profundidade de seus ensinamentos, permanece na história como um clássico da literatura nacional e um dos mais destacados elogios às virtudes do grande taumaturgo, Santo Antônio de Pádua.
Iniciando seu sermão, assim descreve o grande Padre Vieira o milagre de Santo Antônio diante dos peixes:
"Pregava Santo Antônio em Itália, na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos, e como os erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele, e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso de Antônio? [...] Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias, deixa a terra, vai-se ao mar e começa dizer a altas vozes:- Já que não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh! maravilhas do Altíssimo! Oh! poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem, com as cabeças de fora da água, Antônio pregava, e eles ouviam." (Vieira, 1998, p.150-151)
Diante do prodigioso sinal, Vieira se questiona, porquê pregar aos peixes, o que quer dizer esse sinal? Para responder a isso, o grande pregador recorre ao que ele considera como sendo, “virtudes e vícios” dos peixes que nadam nas águas. Primeiramente, ele destaca os peixes como as primeiras criaturas criadas por Deus. O pregador continua o seu sermão, exaltando a “fuga do mundo” metaforizada no distanciamento dos peixes no que diz respeito aos homens.
"Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntado um grande filósofo qual era a melhor terra do mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo Antônio, e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador, bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus pais, e se recolheu ou acolheu a uma religião onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal. Para fugir e se esconder dos homens, mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota, com que não fosse conhecido, nem buscado, antes, deixado de todos, como lhe sucedeu com seus próprios irmãos no Capítulo Geral de Assis." (Vieira, 1998, p.155)
Continua o insigne pregador, compatriota de Santo Antônio, o seu sermão, exaltando o lugar dos peixes e dando-lhes a sua benção e explicitando a sua simbolização nas escrituras sagradas.
"Um só lugar vos deram os astrólogos entre os signos celestes; mas os que só de vós se mantêm na terra, são os que têm mais seguros os lugares do céu. Enfim, sois criaturas daquele elemento cujo a fecundidade entre todos é própria do Espírito Santo: O Espírito de Deus fecundava as águas (Gn, 1,2). Deitou-vos Deus a benção que crescesseis e multiplicásseis; e para que o Senhor vos confirme essa benção, lembrai-vos de não faltar aos pobres com o seu remédio. Entendei que, no sustento dos pobres, tendes seguros os vossos aumentos. Tomai o exemplo nas irmãs sardinhas. Por que cuidais que as multiplica o Criador em número tão inumerável? Porque são sustento dos pobres. Os solhos e os salmões são muitos contados, porque servem à mesa dos reis e dos poderosos; mas o peixe que sustenta a fome dos pobres de Cristo, o mesmo Cristo os multiplica e aumenta. Aqueles dois peixes, companheiros dos cinco pães do deserto, multiplicaram tanto que deram de comer a cinco mil homens. Pois, se peixes mortos, que sustentam a pobres, multiplicam tanto, quanto mais e melhor o farão, os vivos. Crescei peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos confirme a sua benção." (Vieira, 1988, p.161)
Partindo para a conclusão de sua versão do sermão aos peixes, Antônio Vieira exalta a grande humildade, pobreza e santidade do Santo pregador, lisboeta por nascimento e paduano pelos méritos de suas ações, chamando atenção para o orgulho dos homens e sua vaidade.
"Duas coisas há nos homens que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder. Caifás roncava de saber: Vós não sabeis nada (Jo 11, 49). Pilatos roncava de poder: Não sabeis que tenho poder? (Jo 19, 10). E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo, Antônio, tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmos experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais brasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado." (Vieira, 1998, p. 168-169)
Porque a palavra do Evangelho pregado por Antônio é palavra viva e eficaz, seu brado ecoou até os dias de Antônio Vieira e ainda ecoa até chegar à nós, por isso, a partir do Sermão de Padre Vieira, consideremos o que nos ensina esse prodigioso milagre de Antônio em nosso momento presente.
Primeiramente, ecoa ainda hoje a pregação de Antônio nos chamando a atenção para o Evangelho que escutamos e como o escutamos. Em tempos de ativismo exagerado, de produtividade intensa, onde muitos afazeres ocupam nossa mente, que espaço temos dado para a palavra do Senhor? Muitas vezes somos como peixes, até erguemos a cabeça para escutar o Evangelho, contudo, logo voltamos para as nossas atividades cotidianas, sem dar tempo para que a palavra de fruto em nós, e assim, a palavra de Deus passa, como texto e mero conteúdo, sem realmente criar raízes em nosso coração.
Em dias de um Evangelho cada vez mais midiático e adaptado ao mundo digital, agimos tal qual os hereges, usando a palavra ao nosso favor muitas vezes violento e egoista, manipulando-a para fazer caber em nossas vontades, escolhendo as partes que melhor nos cabe, usando a santa palavra de Deus como arma de violência, ódio, destruição, preconceito e intolerância, nos fechando completamente ao anúncio de um Deus que ama, que caminha conosco, que nos acolhe em nossa pequenez e nos ensina a viver a paz, a fraternidade, a justiça e a concórdia. Pelo nosso egoísmo desfigurados o rosto de Deus, pregamos um Deus violento, preconceituoso, severo e distante, enquanto que o Deus mostrado a nós pelo Evangelho de Cristo é um Deus que se faz palavra e pão para todos, sem distinção, um Deus que se faz pequeno, um Deus que se faz humano por amor de nós, um Deus que caminha conosco, que nos abraça, nos perdoa e nos salva.
“Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens”. Em tempos de tantas ocupações e agitações da mente e do coração, dar tempo para à escuta atenta da palavra, na oração, no recolhimento, no silêncio e na contemplação, é completamente necessário e pedagógico. No silêncio e na contemplação aprendemos a parar para ver a beleza de Deus na nossa vida, nas coisas mais grandes e mais pequenas, aprendemos a nos conhecer e conhecer os outros, a lidar com nossa pequenez e vulnerabilidade, a ter um amor paciente, atencioso e generoso para com Deus e para com os irmãos. Onde há a escuta da palavra, não há espaço para desespero, para preconceito, e para desunião, pois Deus é nossa esperança, nossa caridade e nossa fé, Deus é escuta, Deus é encontro, Deus é diálogo, Deus é amor.
“Porque são sustento dos pobres”. Santo Antônio nos ensina ainda que o Evangelho deve estar acompanhado de ações que edifiquem no mundo o Reino de Deus, por isso ele mesmo diz, “Cessem as palavras, falem as obras”. Todo aquele que é fiel ouvinte da palavra, é também fiel praticante e com um olhar atento aos pobres, injustiçados e sofredores, dá pão a quem tem fome, escuta e acolhe com fraternidade, cuida da casa comum, não tolera exploração, violência, ódio e desamor, luta por políticas justas que favoreçam vida plena e em abundância para todos e antecipa com as próprias mãos a edificação do Reino de Deus. Aberto ao Espírito Santo, dá fruto em abundância, multiplicando sempre mais as graças que recebe do Altíssimo Pai celestial.
“Duas coisas há nos homens que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder”. Existe nos dias de hoje uma luta desenfreada pelo poder, homens e mulheres lutam entre si para poder mais, as pessoas se transformam em adversários, se pisa em cima do outro, diminuindo, desprezando e inviabilizando para alcançar um lugar de poder e destaque. Dissemina-se notícias falsas, ódio e divisão para se manter em um lugar de poder e dominação. Países entram em guerra, promovem-se genocídios, preconceito e violência, para manter o status de alguns poucos que arrogam para si um lugar de privilégio e destaque. Há muitos que para colaborar com essa luta de poder, compartilham saberes falsos e para garantir mais poder, lucro e riqueza, inviabilizam e desconsideram saberes constituídos. Muitos que incham de saber e se tornam orgulhosos e arrogantes, diminuindo e desprezando qualquer um que se constitua como diferente.
Ao vestir o hábito da penitência e abraçar uma vida de pobreza, Antônio nos mostra que todas as graças e bens que temos, não são nossos, mas é Deus que nos dá esses dons para serem compartilhados e usados na edificação do Reino. Diante da grandeza de Deus, nós somos vulneráveis e pequenos, e tudo que possuímos e sabemos, um dia de forma inesperada se torna pó. Construir um mundo novo, viver como irmãos, anunciar a Paz e o Bem, implica em rebaixar-se diante da mão poderosa de Deus e de seu amor maior que nós, nos fazer humus, terra fértil de onde não por nossos méritos, mas pelo amor fecundo do Deus uno e trino, se faz gerar a todo tempo vida em abundância.
Eis o brado de Antônio, martelo dos hereges. Homem segundo o Evangelho. Sua palavra é atual e presente, pois é a palavra do Evangelho, palavra viva do próprio Deus, que permanece para sempre e caminha no meio de nós, nos ensinando a como seguir fielmente a este Deus que ama e que salva a todos sem distinção, e a como por meio das obras nos identificarmos à esse Deus que é todo e completamente amor.
Referências: Vieira, Antônio. Sermões Padre Antônio Vieira: Volume 2. Erechim: Eldebra, 1998
Frei Matheus Sanches, OFM







